Por Marta Cioccari (*)
Um dos principais líderes dos trabalhadores rurais de Pernambuco, Euclides Nascimento, morreu na última segunda-feira, dia 26 de dezembro, aos 79 anos, em Recife, vítima de uma parada cardíaca. Um dos fundadores da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), entidade que ele presidiu por sete anos, nos últimos tempos, continuava a ser um militante ardoroso em favor da Reforma Agrária e em defesa das causas dos homens e das mulheres do campo. Num cordel que escreveu para a campanha pelo Limite da Propriedade da Terra, deixou um legado:

[box]“Ou o Brasil acaba com o latifúndio, ou o latifúndio acaba com o Brasil”.[/box] Narrador talentoso, era daqueles que deixavam impressionado seu interlocutor ou sua plateia, estivesse ele falando sobre os dramas vividos pelos camponeses na zona da Mata de Pernambuco, diante da miséria ou violência do latifúndio, ou sobre as peripécias a que eram obrigados os sindicalistas para sobreviver à ditadura. Sindicalista habilidoso e homem de coragem, Euclides havia enfrentado a pressão do Exército e de latifundiários durante o regime militar, sem se intimidar.

Algumas destas histórias ele voltou evocar cerca de um mês antes de sua morte, num evento realizado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife, que marcou o lançamento do livro Retrato da Repressão Política no Campo, publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2010, e do qual ele foi um dos colaboradores. Euclides relatava, por exemplo, o caso de um trabalhador que, sob as ordens e as ameaças do patrão, foi enterrado vivo pelos próprios companheiros de trabalho. Sob a mira de espingardas, os jagunços obrigaram os colegas a cavarem um buraco, onde o trabalhador foi metido, de pé, ficando com ombros e a cabeça para fora. Outro trabalhador deveria passar com o caminhão sobre a vítima. Ele foi salvo quando o pneu do caminhão estava a poucos centímetros de sua cabeça. Euclides, então presidente da federação dos trabalhadores, procurou as autoridades e denunciou publicamente o caso.

A Euclides Nascimento nunca faltou coragem para enfrentar quem quer que fosse: o ministro do Trabalho dos tempos da ditadura, um oficial do Exército, um usineiro ou um senhor de engenho. Um episódio que ele costumava contar era sobre a ocasião em que devolveu o “abano” na face de um militar, no início dos anos 70. O fato foi rememorado, nos últimos dias, pelo antropólogo Afrânio Garcia, ex-assessor de movimentos sindicais, e hoje professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Preso no IV Exército, o líder sindical estava sendo questionado pelo Comandante, que o respeitava inclusive pelas justificativas absolutamente legais e argutas de suas ações:

[box] – O que aconteceu, Euclides, você endoidou? Meteu a mão na cara de um oficial do Exército? Agora não dará mais para aliviar sua barra! – Sabe o que é senhor Comandante? Nos semos matutos, temos que aprender com povo sabido do Recife. Major chegou gritando, fazendo muita pergunta. Quando comecei a falar, abanou a mão minha cara, antes de eu dizer um ai. Disse comigo: é nova moda no Recife entre o pessoal educado! Balancei a mão na cara dele também antes de começar a responder.[/box]

Daquela vez como em outras, foi solto. Mas, além da habilidade, parte da relativa proteção de Euclides – que não sofreu a repressão mais brutal no regime militar, reservada principalmente aos militantes comunistas e aos ativistas das Ligas camponesas – vinha ainda do fato de ele ser oriundo do sindicalismo católico, representado pelo Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (Sorpe), organismo pelo qual, desde o início dos anos 1960, a Igreja Católica buscava ampliar sua influência no campo. Em Pernambuco, o Sorpe fundou 45 sindicatos rurais em 1963 e outros dois em 1964, mantendo naquele período o controle sobre 68 sindicatos rurais do estado. Consistia inicialmente numa reação às Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, e aos sindicatos organizados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), tal como o de Palmares (PE), onde atuava Gregório Bezerra. Mas o regime implantado em 1964 não tardaria a perseguir também os sindicalistas católicos e a intervir nas entidades organizadas sob a influência da Igreja.

Como explica José Francisco da Silva, ex-presidente da Contag – e que juntamente com Euclides Nascimento e José Rodrigues foi um dos principais articuladores do sindicalismo dos trabalhadores rurais no país –, no período posterior ao golpe, o esforço era para restabelecer o funcionamento dos sindicatos interditos, mesmo que fosse para atuarem nas limitações do estatuto dos sindicatos e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nesta época, as lutas em que se engajaram homens como Euclides Nascimento eram pelo cumprimento da legislação em vigor – o Estatuto da Terra e o Estatuto do Trabalhador Rural. Mas mesmo a defesa de direitos já consagrados em lei era encarada como um desafio à ordem imposta pela ditadura, nas suas alianças com os grandes proprietários de terra, usineiros e senhores de engenho.

Nascido em 17 de junho de 1932, no Engenho Cafundó, hoje município de Buenos Aires, Euclides provinha de uma família de pequenos produtores, configurando algo frequente nas mobilizações camponesas, como mostram estudos sobre o tema: o fato de que famílias com recursos, inclusive com acesso à terra, podiam abrir o caminho à mobilização de camponeses mais dominados ou de “assalariados” sem estatuto definido. Desde muito jovem, Euclides se engajou num trabalho de apostolado na diocese de Nazaré da Mata. Já tinha visto trabalhadores em situação de extrema miséria quando foi chamado pela Igreja Católica para fundar sindicatos de camponeses, em 1961. O sindicato de Nazaré da Mata foi criado no mesmo ano. “Os latifundiários se revoltaram contra mim. Diziam que eu era perigoso, comunista. O trabalhador não tinha direito nem a férias, vivia escravizado”, contou Euclides. Em 1963, o sindicato foi reconhecido legalmente. Com o Estatuto do Trabalhador Rural, passou a ter direitos. Ele lembrava que, naquele ano, houve a maior greve de trabalhadores na Zona da Mata. Foi quando trabalhadores e usineiros sentaram pela primeira vez para negociar frente a frente. No primeiro governo Arraes, foi assinado o Acordo do Campo, quando os trabalhadores obtiveram um aumento de 80% acima do salário oficial, sendo assinado o primeiro contrato de trabalho no meio rural, a Tabela Normativa de Tarefas. Daí por diante, o líder sindical nunca mais parou. Manteve sua militância por toda a vida.

Telegrama
Segue íntegra do telegrama enviado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional) aos familiares e amigos de Euclides Nascimento:

Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Aos familiares e amigos de Euclides Nascimento,

É com profundo pesar que a Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional e da Universidade Federal do Rio de Janeiro recebe a notícia do falecimento de Euclides Nascimento, um dos
fundadores da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco e destacado militante da causa da melhoria das condições de vida dos camponeses e da reforma agrária.

Euclides contribuiu decisivamente para que várias importantes pesquisas do
Museu Nacional sobre os trabalhadores rurais de Pernambuco pudessem ser realizadas desde 1969, um ano depois da fundação deste Programa, e durante toda a década de 70 e 80. Desde então diversos pesquisadores do Museu Nacional sempre contaram com sua colaboração em seus trabalhos de campo naquela área. Nos últimos anos Euclides era um dos entusiastas da linha de pesquisa Memória Camponesa, na qual ele figura como um dos principais personagens.

O PPGAS-Museu Nacional deseja assim juntar-se às manifestações de
solidariedade e afeto aos familiares e amigos de Euclides, assim como à FETAPE e à CONTAG, e transmitir a gratidão de vários professores, alunos e ex-alunos para com aquele que tanto ajudou este Programa a tornar-se uma referência.

[box type=”bio”] (*) Jornalista e antropóloga, pesquisadora do PPGAS, Museu Nacional, UFRJ, é co-autora do livro Retrato da Repressão Política no Campo, Brasil 1962-1985, Camponeses torturados, mortos e desaparecidos.[/box]

Artigo publicado no site Carta Maior em 30/12/2011